2024/07 . DE LA NO-VIDÊNCIA GENERAL, JOSÉ SARAMAGO
No caminho para a casa da rapariga dos óculos escuros, atravessaram uma grande praça, onde havia grupos de cegos que escutavam os discursos doutros cegos. À primeira vista, nem uns nem outros pareciam cegos. Os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam.
Proclamava-se ali o fim do mundo, a salvação penitencial, a visão do sétimo dia. o advento do anjo, a colisão cósmica, a extinção do sol, o espírito da tribo, a seiva da mandrágora, o unguento do tigre, a virtude do signo, a disciplina do vento, o perfume da lua, a reivindicação da treva, o poder do esconjuro, a marca do calcanhar, a crucificação da rosa, a pureza da linfa, o sangue do gato preto, a dormência da sombra, a revolta das marés, a lógica da antropofagia, a castração sem dor, a tatuagem divina, a cegueira voluntária, o pensamento convexo, o pensamento côncavo, o piano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra.
Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido. Talvez a organização seja noutra praça, respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do médico disse: Há mais mortos no caminho do que é costume. É a nossa resistência que está a chegar ao fim. O tempo acaba-se, a água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu o disseste antes, lembrou o médico. Quem sabe se entre estes mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo. É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver.
Eram homens e mulheres que pareciam fluidos como espectros, podiam ser fantasmas assistindo por curiosidade a um enterro. Apenas para recordarem como tinha sido no seu caso. A mulher do médico viu-os, enfim, quando, terminada a cova, aprumou os rins doloridos e levou o antebraço à fronte para enxugar o suor. Então, levada por um impulso irresistível, sem o ter pensado antes, gritou para aqueles cegos e para todos os cegos do mundo, Ressurgirá! Note-se que não disse Ressuscitará. O caso não era para tanto, embora o dicionário esteja aí para afirmar, prometer ou ensinar que se trata de perfeitos e exactos sinónimos.
Os cegos assustaram-se e meteram-se para dentro das casas, não percebiam por que fora dita uma tal palavra, além disso não deviam estar preparados para uma revelação destas, via-se que não eram frequentadores da praça dos anunciamentos mágicos, a cuja relação, para ficar completa, só tinha faltado acrescentar A cabeça do louva-a-deus e O suicídio do lacrau...
ESSES SÃO TRECHOS DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, livro onde Saramago reflete sobre o que aconteceria se fôssemos todos cegos.
José Saramago teve uma felicidade desejada por todos, alcançada somente por alguns, e um merecimento raro: foi um velho que os jovens escutavam.
A primeira vez que eu escutei e vi Saramago, foi no Documentário Janela da Alma. Eu parei para escutar aquele cara. E dali para frente buscava constantemente o que ele havia falado de mais recente.
Me chamou a atenção um sujeito tão sábio falando em português. Havia um sábio que falava português. Grande glória, frente a que países como o nosso produzem desinformação programada ou sem-intenção, 24h.
Mas quem falava outros idiomas também ouvia Saramago. Ele era um Nobel de literatura. Todos os Nobel de literatura são clássicos, são leitura obrigatória para quem deseja ser considerado pessoa culta.
E Saramago tinha um pensamento muito humano. Se tivesse um pensamento como o que se chama hoje, NeoLiberal, interessaria tanto quanto os filósofos econômicos atuais. Mas Saramago era diferente.
José Saramago foi o último grande comunista do mundo. Saramago foi um comunista culto, importante, e que sabia se expressar. Por isso, aos 90 anos de idade não tinha quase tempo para trabalhar em seus livros, tal volume de pedidos de entrevistas e participações na tv.
E ele gostava. Ele dizia, a melhor felicidade que teve foi chegar à idade maior, tendo algo de relevante a falar, e nque as pessoas tivessem interesse naquilo que ele tinha a falar.
Entre os aspectos que existiam em um passado recente e que agora me fazem muita falta, e ter um ancião que eu possa parar para escutar.
Realmente, nem ancião nem ninguém. Refugio-me nos livros dos pensadores clássicos, tal qual Maquiavel segundo ele mesmo.
Mas o que se espera de um ancião, é que ele tenha vivido uma vida maravilhosa, e depois de a energia ter se reduzido, que ele tenha muita experiência e sabedoria para passar aos mais novos.
E não é isso que agente vê. Bem,... Pode-se ver surtos de lucidez, como no caso de Delfin Neto declarar o voto dele no Lula, mas são relances, são flashs.
O comum é gente ver gente que ficou rica com picaretagem, conluio e crime, dando aula de como ficar rico sendo genialmente inventivo, disciplinado, empreendedor, honesto...
Saramago, para mim, está no mesmo nível de Milton Santos. São pessoas muito diferentes, evidentemente. Mas ambos estão no mesmo nível de atenção que eu dedicava e dedico, já que já não estão entre nós, mas eu faço questão de continuar me aprofundando na obra do dois.